Texto publicado na Revista Universo FNAC – Edição no 26 – Agosto-Setembro (2017)
O historiador Eric Hobsbawm se referiu ao século passado como a “era dos extremos, o breve século XX”, dado o impressionante número de fatos e transformações importantes que ocorreram no mundo dentro de um único século. Utilizo o mesmo raciocínio quando penso nos 75 anos de Caetano Veloso. Não sou contemporâneo de sua infância ou juventude, mas, na condição de pesquisador e biógrafo, tive o privilégio de conhecer em detalhes cada ano de sua vida. Assim pude comprovar que os 75 anos desse artista parecem pouco quando pensamos em tudo que ele já produziu no campo da arte.
Minha história com Caetano Veloso começou em 1997, quando iniciei, com meu amigo Marcio Nolasco, uma ambiciosa pesquisa que seria a base para escrevermos uma biografia verdadeiramente abrangente desse artista. Convivemos com seus irmãos, amigos, amores, conhecemos sua cidade, sua gente, sua casa, seus filhos. Estivemos com ele em quatro ocasiões, mas a primeira delas foi, para mim, a mais emblemática. Em 2000, a cantora Cybele, do Quarteto em Cy, nos apresentou a ele nos bastidores do show A Arte do Encontro, em homenagem a Vinícius de Moraes. Apertei a mão dele e disse: “Caetano, temos uma forte ligação com você, mas você não sabe!”. Ao que ele me respondeu de pronto: “Pois então quero saber!”.
Essa curiosidade insaciável pelo novo, essa necessidade de experimentar, de interagir, de se entregar sem limites, sem fronteiras, é, sem dúvida, a característica de Caetano que mais me impressiona. É também aquela que o torna um artista singular, e o mais completo de sua geração. Caetano Veloso se reinventa o tempo inteiro, não tem preconceitos em relação a qualquer manifestação artística, absorve constantemente o que está a sua volta, criando e recriando, com seu jeito particular de ver o mundo. O Tropicalismo terminou, mas Caetano nunca deixou de ser Tropicalista. Por todos os motivos do mundo, precisamos celebrar os “breves” 75 anos de Caetano Veloso.
Parábola do samba-enredo (2014)
João do
Pandeiro, morador de morro e compositor de Samba-Enredo, fez um samba sozinho e
inscreveu no concurso de sambas de sua escola de coração. Perdeu na final, uma
semana depois da inscrição. Para compor, inscrever e participar da disputa, não
gastou mais que duas cervejas. No outro ano, encontrou um amigo bom de melodia
e os dois compuseram novo samba. Dessa vez, ganhou, interpretando, ele próprio,
o samba. E gastou apenas quatro cervejas. Nos concursos seguintes, João percebeu
que não ganhava mais. Reparou também que os sambas inscritos eram assinados por
pelo menos dois compositores. E, curiosamente, os que ganhavam tinham bons
cantores. João, então, decidiu convidar um intérprete para cantar seus sambas.
Chegou à final novamente, mas não ganhou. Gastou as cervejas e o preço acertado
com o cantor. No ano seguinte, caprichou no samba outra vez e contratou um
cantor de apoio. Ganhou de novo. Porém, gastou bem mais. O tempo passou e João
voltou a perder. Viu, então, que os sambas vencedores tinham pelo menos dois
cantores, um surdo, um violão, além do cavaquinho. E havia gente torcendo por
eles. João, então, resolveu convidar Seu Manoel da Padaria para assinar o samba
com ele, porque os custos seriam maiores. Seu Manoel, muito vaidoso, aceitou.
Com três compositores, e um bando de portugueses na torcida, o samba de João
chegou à final e ganhou de novo. Festa na padaria. João gastou, mas Seu Manoel
gastou muito mais. Outras derrotas vieram. E João começou a ficar desiludido. Coincidentemente,
os sambas vencedores levavam pelo menos quatro bons cantores, um ônibus com
torcida, papel picado e bandeiras. João precisou convidar Seu Manoel da
Padaria, Seu Jorge do Açougue, além de Marcinho Professor, que dava aula para
três turmas lotadas de jovens apaixonados por samba. E convidou também o
Rogerinho da Viação Flecha, porque conseguia ônibus de graça. Seu samba chegou
à final, após oito semanas de apresentações e quadra lotada. Que festa! E o
samba de João venceu novamente. O prêmio foi alto, mas depois de fazer a
divisão entre os colaboradores, e abater os gastos, sobrou apenas o orgulho
pela vitória. João voltou a perder nos anos seguintes. Observou que depois de
treze apresentações, todas as parcerias finalistas eram formadas por pelo menos
vinte pessoas, roupas padronizadas, torcidas organizadas (e bem alimentadas),
papel picado, alegorias, bandeiras, bolas caindo do teto, bomba de serpentina,
fogos de interior, telão de led, carro de som, canhão de luzes, danças
coreografadas, faixas e adesivos com o refrão, além de quinze mil prospectos e
cinco mil CDs
distribuídos durante todo o concurso. A neta de João disse a ele que o samba
campeão havia sido muito bem comentado nas redes sociais e que tinha feito um
clipe que bombou no youtube durante toda a disputa. João não acessava a Internet.
Ficou desiludido mais uma vez. No último ano, apenas quatro parcerias tiveram
coragem (e orçamento) para se inscrever na disputa, e todas com compositores
mesclados de outras escolas. Na lista de compositores inscritos, havia seis
cantores de renome, um jogador de futebol, vinte e cinco empresários e um
político. João assistiu à vitória de um samba que gastou o equivalente a um
imóvel e levou duas mil pessoas à quadra na final... cantando. E João, que ainda
morava de aluguel, concluiu que não dava mais para ele. Os sambas dele já não
tocavam mais na quadra porque não se encaixavam no formato novo. João morreu no
dia de uma final de sua escola de coração. Mas nem sequer foi feito o minuto de
silêncio. O cara responsável estava ocupado no celular, tentando acessar a rede
wi-fi, para publicar uma foto com a rainha de bateria, enquanto o cantor
da Escola interpretava os versos: Não deixe o samba morrer....
Trecho do livro “Dreamaker – O Realizador de Sonhos” (2010)
(...) Ao logo
da década anterior, uma família de ciganos costumava visitar Mesla fazendo
grande alvoroço com apitos e tambores. Era sempre uma alegria especial receber
aquele povo que trazia novidades do mundo inteiro. Por alguma razão, porém, o
grupo deixou de aparecer na cidade. Ninguém soube dizer o paradeiro deles. O
fato é que eles nunca mais retornaram. Por esse motivo, a visita de qualquer
forasteiro sempre causava furor na população. Naquele ano, não seria diferente.
Num domingo
pela manhã, um homem entrou sozinho em Mesla, numa carroça coberta, puxada por
dois cavalos de pelo marrom. Existia um cartaz afixado em cada lateral da
carroça. No texto existente neles, o estranho prometia levar versos encantados
aos moradores daquele pequeno vilarejo, numa apresentação única, próxima ao
coreto da praça, em troca de algumas moedas.
A timidez
daquele senhor contrastava com a algazarra que o povo fazia em volta. Chegou
calado, com a franja de cabelos pretos quase cobrindo os olhos. Os cavalos
andavam, vagarosamente, com as cabeças baixas, como se estivessem cansados,
desanimados, sem vida. A carroça parou na praça, à sombra de uma enorme
amendoeira. O homem desceu lentamente, deu comida e água aos animais, entrou no
fundo da carroça e lá permaneceu.
O povo se
revezava em volta da carroça à espera dos versos encantados prometidos na
propaganda. Melck também ficara ali para assistir à apresentação. Ao primeiro
sinal do poeta, alguém mandaria avisar o restante dos moradores e logo uma
multidão se aglomeraria na praça. Com o sumiço dos ciganos, era difícil aquele
povo receber visitas de qualquer natureza, ainda mais a de um poeta. Ninguém
queria perder a oportunidade.
Quando a
maioria começou a desistir, dois autofalantes surgiram no topo da carroça. O homem
triste que pouco antes havia entrado, agora era um poeta bem vestido, de
fraque, cabelos penteados para trás, e com gestos de um orador profissional. Em
minutos, toda a carroça, como uma carruagem, estava enfeitada e cercada de
luzes. Os cavalos receberam plumas, perfume, pareciam mais vivos, alegres, mais
potentes. O homem não revelou seu nome a ninguém, apenas se apresentou como
poeta.
Não demorou e
a notícia correu a cidade. A vizinhança logo partiu em bandos para o local.
Professores cancelaram seus afazeres e convidaram os alunos para se dirigirem à
praça. Também estavam lá Jerôme, Igor, Marie, suas irmãs, e respectivas
famílias. Àquela altura já havia gente de outros povoados, forasteiros de
passagem, políticos, representantes da igreja local, um sem número de
comerciantes e aproveitadores de todo tipo.
O poeta
iniciou sua apresentação com versos que valorizavam a união entre os povos. Em
seguida, desfiou redondilhas de amor, saudade, solidão, e todo sentimento comum
a qualquer pessoa. O público se reconhecia nos poemas e se emocionava. Um ou
outro morador arriscava sugerir uma temática e o bardo misterioso atendia de
pronto.
— Fale sobre o
casamento! — Pediu uma jovem que sonhava encontrar seu amor.
— E por que não,
senhorita? — Respondeu o poeta, antes de recitar um soneto sobre o assunto.
— Agora uma
poesia sobre o trabalho! — Gritou o dono da quitanda.
— Com todo
prazer, senhor! — Respondeu novamente, sem se intimidar.
A cada poema
recitado, Melck e os amigos aplaudiam cheios de entusiasmo. Uma cartola deixada
à beira da calçada enchia de moedas à medida que as poesias eram interpretadas
pelo estrangeiro. Ele era mesmo de outra região. Ninguém conseguia decifrar a
nacionalidade que, a princípio, lhes pareceu latina. Um acento estranho na voz
do qual o povo local não conseguia distinguir a origem. Mas isso não importava.
O sotaque até lhe dava o charme intelectual de que precisava para ganhar
respeito do público.
A apresentação
estava quase no fim, quando o poeta avistou o rosto de Melck e ficou em
silêncio. A identificação daquela pessoa especial ali no meio da multidão foi
uma descoberta inesperada. Uma grata surpresa que precisava ser comemorada com
a poesia que melhor conviesse. Naquela fração de segundos, o poeta encarou
Melck e vice-versa. O povo nada entendia, apenas continuava atento aos dois.
O estranho
decidiu, então, quebrar o silêncio, avisando a todo mundo que iria dedicar-lhe
um poema. Ninguém precisava entender. Era apenas uma homenagem. Não existia
técnica, metrificação; havia, sim, o desejo de fazer aquelas palavras ecoarem
no subconsciente do homem que assistia a tudo da platéia. (...)
Orelha do livro “Entreteias”
(2007)
“Entreteias”
chegou às minhas mãos em folhas avulsas de papel reciclado, sem o acabamento
visual elaborado pelas editoras. A agitação do dia-a-dia me obrigou a deixá-lo
sobre a mesa da sala por duas semanas, ainda que o nome da obra tenha
despertado em mim um interesse que me corroeu por todo esse tempo.
A leitura de
um livro começa pelo título. É a partir dele que o imaginário do leitor vai ser
moldado. O duplo sentido aqui presente sugere de modo fulminante a atmosfera
moderna em que o leitor está prestes a penetrar. A suspeita inicial é
confirmada logo nos primeiros “cantos”, em que o autor assume uma postura filosófica,
reflexiva, ao longo de versos brancos, dispostos sem o rigor formal tão
característico da poesia clássica.
Na temática
também é assim, por isso não espere encontrar aqui poemas de amor dilacerante,
paixões arrebatadoras, confissões de um “eu” lírico escancarado. Não é esse o
propósito do livro. Para mim, que tenho a sorte de manter os olhos e a mente no
século XXI e o coração no século XIX, foi uma grata surpresa essa constatação,
o que me causou uma estranheza só denunciada pelos olhos de quem vê o novo pela
primeira vez.
O poeta Diego
Braga não escreve poesia popular, não redige aquele verso que se compreende na
primeira leitura; produz, antes de tudo, um texto desafiador, instigante, que
exige do leitor o raciocínio, o cuidado, a reflexão. Esse traço revela, na
intuição de minha sensibilidade, o grande mérito do livro. A poesia dele,
elaborada dessa forma, se apresenta a maior parte do tempo exalando o aroma
fresco da vanguarda.
Em seu estro,
ele usa e abusa de recursos linguísticos que visam, sem qualquer prepotência,
reinventar a língua, esmiúça-la, virá-la do avesso até, se necessário for, só
para traduzir o sentimento preciso, muitas vezes descrevendo a “aparência” do
abstrato, como se fosse um exercício literário desafiador e complexo.
O jogo de
palavras, a antítese, o anagrama, a influência de Fernando Pessoa e dos gregos,
o neologismo de James Joyce e Guimarães Rosa, a poesia visual, herança concreta
dos irmãos Campos e Décio Pignatari, a natureza, os Deuses, o tudo e o nada, o
muito e o pouco, desfilam nas páginas desse livro, cuja leitura me deixou
convicto, nas palavras do próprio autor, de que “tudo é um deixar de ser outra
coisa”.
Apresentação do livro “Pequenos
Sons” (2003)
O
soneto surgiu no início do século XIII, na Sicília, onde era cantado na corte
de Frederico II, a exemplo das tradicionais baladas provençais. Atribuído por
alguns à Jacopo da Lentini, o soneto tornou-se mais conhecido depois de
aperfeiçoado por Francesco Petrarca.
Nada
disso era de meu conhecimento quando resolvi escrever poesias no final dos anos 1980. Descobri a literatura quando cursava o Ensino Médio no Colégio Pedro II. Na
época, assombrei-me diante da poesia fundo-de-poço dos poetas ultra-românticos,
sobretudo Álvares de Azevedo. Eu estava no auge de minha adolescência e era
dotado de uma personalidade muito mais oitocentista que qualquer outra coisa.
Num período em que o Rock brasileiro explodia nas rádios e o país continuava
sua cavalgada em busca de uma democracia madura e completamente desintoxicada
do que havia bem pouco tempo antes, eu estava mergulhado na poesia romântica do
século XIX.
Não
me envergonho disso, pois esse primeiro contato, na contramão de tudo e de
todos, foi o que fez brotar em mim o amor à poesia, à literatura, aos livros.
Assim, pois, o maravilhoso universo das palavras chegou tardiamente ao meu
conhecimento. Essa constatação, no entanto, nunca me abateu. Levado pelas mãos
de poetas como Álvares de Azevedo, Castro Alves e Casimiro de Abreu, devorei
quase todos os autores daquela geração. Esgotados esses autores, busquei outros
mais, numa progressão geométrica que se mantém até os dias de hoje. Foi no meio
dessa viagem sem volta que conheci essa fascinante forma poética intitulada:
Soneto.
Ainda
sem saber as complicadas regras existentes nas entrelinhas dos quatorze versos
de um soneto, fiquei apaixonado por sua beleza singular. Não me lembro do
primeiro que li, mas tenho comigo os muitos ensinamentos absorvidos durante a
leitura de vários deles. E, olha, foram muitos e de muitos autores diferentes.
Olavo Bilac, Raimundo Correia, Cruz e Souza, Castro Alves, Camões, Bocage,
Florbela Espanca, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Vinícius de Moraes,
Pablo Neruda, são apenas algumas fontes das quais bebi até a última gota.
O
fascínio aumentou quando me dei conta do enorme desafio que é, para um poeta,
escrever um legítimo soneto, com suas principais regras obedecidas rigidamente.
Como já disseram, “escrever um soneto é esculpir uma gaiola de aço que prenda
pássaros de ouro”. Só mesmo quem já se aventurou a escrever esse tipo de poema
sabe do que estou falando. Por amar tanto a forma, achei-me no direito (quiçá,
prepotência) de também escrever um. Nossa, como foi difícil. Mas, enfim, o
tempo, o esforço, o amor, a força de vontade e sei lá o que mais, permitiram-me
evoluir de modo a produzir meus primeiros sonetos. Nada que me estimulasse
muito. Assim mesmo não desisti. Melhorei um pouco mais e comecei a produzir os
primeiros protótipos considerados, por mim, dignos de compor um livro.
Não
quero mendigar elogios. Sei que já escrevi bons sonetos, todavia, também sou
consciente de minhas falhas e, por esse motivo, tenho muito a aprender. Este
livro é o resultado de tudo isso. Amo tudo que escrevi. Está aí, para quem
quiser ler, sentir, gostar, até mesmo jogar pedra. Minha literatura, no
entanto, segue para outros rumos.
Não
sei em que medida o texto clássico se fará presente nas minhas obras daqui em
diante. A decisão de publicar este livro está intimamente ligada a este fato.
Mas isso é assunto para o futuro. Por ora, vamos mergulhar nos Pequenos Sons
de uma “sonetoterapia”. E para terminar, seguirei o conselho de meu amigo Piotr
Slacen: favor usar com moderação.
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